segunda-feira, 5 de janeiro de 2009

às vezes ainda a tristeza

abraçada ainda às vezes. por issso. por aquilo. por tudo o que escapa.


"porque a carne é coisa viva, coisa de água e de sangue(...)eu tentei. tentei. sabe que lá fora, a torre dispersa ilumina-se, telha a telha, de gente que não existe. dentro da torre não existe ninguém. e eu que imaginei cada pessoa, cada história pequena no momento de os olhar e na torre não existe ninguém. e eu chamei. eu tentei. cada homem esconde em si um crime atroz, compreendo agora, eu que sempre achei possível que, descendo das torres os homens fossem um dia animais doces e que do esgar das bocas não fosse um único veneno verdadeiramente mortal. eu que vi pequenos nadas na luz acesa das mãos a vibrar e a desenhar mundos inteiros. inteiros, meu amor, inteiros eram os nadas que eu julguei encontrar em ti. e então nada é melhor que tudo, mas foi pois dos nadas que eu desabei. rebolei e esfolei os braços e o peito e esta perna ainda apertada de si. e eu tentei. na minha forma de ver que isto vai certo que pode ser assim que esteja certo, devagar, vai estando certo, devagar. mas não esteve. não estava. e a notícia chegou amarga e afiada nessa carta tão cheia de arestas, tão cheia de falhas, tão cheia de eu posso apertar o mundo na minha mão sem noite nem dia. eu podia dizer que sei. mas não sei. quero um soalho mais limpo um quarto menos vazio, uma cidade mais tranquila. muito menos longe deste exílio confuso. (...) um destes dias volto a ver o mar. e se ainda me vê, quando fecha os olhos, encha-me uma outra carta com esse nada que eu ainda sou. se o for. se o for (...)"

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

evitar pedir o costume


um carácter um pouco violento, é certo. assertivo, também. mas só no que respeita a viajantes desonestos:

" tudo voltará ao mesmo ponto de partida. Nada evolui, nada se torna mais claro (...) olhando através do fundo do mesmo velho copo, tudo o que conseguirá fazer de novo, é pedir que o encham novamente. Beberá até adormecer. com um olho fechado e outro aberto com dificuldade, espreitando através do vidro, todas essas imagens distorcidas voltarão a assombrar-lhe a noite (...) Sairá cambaleando, escoltado por esse exercício defensivo absurdo de se acusar a si primeiro, em direcção à mesma rua segura. À mesma rua, afinal, ao mesmo transporte, ao mesmo caminho. nunca terá medo, porque nunca saberá como dedicar-se a outro tajecto (...) Dorme o mesmo sono há vinte anos e reclama o génio de saber calar-se. Mas você não sabe calar-se - sabe fugir (...) Tapa a cara com a mão, deixa um olho descoberto e lá olha sempre pelo mesmo copo, convencido de que vai vendo o que ninguém mais vê (...) Convido-o a ter medo"



segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

evitar parecer cansada





quando, de madrugada, estiver exausta de tentar lembrar-se dos sonhos que teve, adormece:

"(...) durmo um sono preverso. com a faca na liga. como uma ordinária. porque me estragou a forma de dormir? eu era doce e as minhas mãos estavam serenas quando dormia ao seu lado (...) mas depois convenceu-me que o sono era só mais outra forma de eu o convencer e eu acreditei que não podia mais dormir descansada. Agora finjo que estou morta quando quero dormir. Porque, apesar de uma mulher poder ser bela e sincera, estando morta, é muito fria. E ninguém quer dormir com uma mulher fria (...) Saiu levando mais de metade do meu calor consigo. Entre outras coisas. Desejo-lhe, enquanto me agito com a minha nova forma gelada de descansar, que nunca mais consiga uma pele quente e terna - pelo menos, sem mim (...)."

domingo, 21 de dezembro de 2008

evitar dobrar os cantos das páginas



...dessa noite, entre as linhas ilegíveis, lia-se:

"(...) hoje estou só cansada...

(...) houve homens que me ofereceram cigarros e perguntavam-me 'não sabe que é muito bonita?', 'quer um cigarro para o seu companheiro?', que é uma forma grosseira de querer saber coisas intocáveis. Não, não sei. Estou cansada, meu querido cobarde, e afinal, que importaria isso se na verdade,não entro em nenhum dos seus romances? (...) Todas as praças da cidade são estranhas e havia uma estátua de uma mulher no meio das árvores e um frio que invadia e cortava, vindo de fora, bruto e imenso. Todas as praças iluminadas e eu quase fiz um esforço para fazer parte de tudo. Mas que importa isso se não entro em nenhum dos seus romances? Se outro me escrevesse, provavelmente você gostaria de me ler, aí, na distância perfeita e resguardada da sua paciência individual, dessa sua espécie de auto-suficiência sustentada numa tolerância cruel. Esse outro diria ' a rapariga descia a avenida, cantando baixinho, respirando unicamente pelo nariz, até se sentir conduzida unicamente pelo desequilíbrio provocado pelo ar frio e o excesso de oxigenação', qualquer coisa assim. Acharia graça e continuaria a ler. Depois descreveriam-me até uma praça junto de um parque, sempre de noite. E aí todo o capítulo se teceria dentro de mim, da minha forma encantada e dos meus pensamentos acerca de um homem de quem eu fugia, um homem que nesse momento estaria talvez até a escrever sobre outra qualquer mulher, desenhando na sua imaginação encontros e tardes ternas e convites meigos. E aí, se ainda continuasse a ler, talvez então pensasse que era muito errado deixar assim uma mulher correr para outra cidade...'que raio de homem faria isto', 'que belo que seria se ele a surpreendesse nessa cidade ou mesmo dissesse que todos os convites e tardes idealizadas eram, afinal, para ela mesmo'. para ela. (...) talvez até achasse um mau romance, mas quisesse aproveitar a personagem que o cativara para lhe dar outro fim mais conforme as ideias que tem, tão lindas, acerca de encontros românticos - isto, claro, dentro da sua própria ideia de romantismo ou de amor. (...) de todas as coisas que hoje consigo dizer, a que mais me dói é a de já não ser digna das suas histórias. dos seus sonhos. e estou cansada (...) que bela descrição daria o meu rosto assustado e insolente. que bela seria eu nos seus jardins e nos seus museus. ao som da sua música e das suas palavras, se me quisesse chamar. mas eu iria estragar tudo, não é meu querido idiota? eu estragaria de morte a sua imortalidade (...) convide-me. convide-me (...)"

aos tombos, a cidade constroí-se, na noite dos Homens. algumas linhas permanecem ilegíveis. para sempre.


sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

evitar o vagão restaurante



em cada esquina a memória escorrega:

"hoje é tempo para outra cidade, meu amor. Descer uma nova avenida e esperar nos cafés (...) Tudo parece feito a seu tempo próprio. Um tempo que não é meu e que me foi imposto por si, quando me tentou convencer que era o tempo de partir. Vivo em parte esse seu tempo, que se afastou tanto e tão de repente do que era o meu. Não parto só, desta vez, quero que o saiba (...) É triste comer sozinha e desta vez, pelo menos, poderei ter uma companhia agradável e compreensiva às refeições. Não terei de me fechar no meu compartimento sempre que tiver fome, fugindo dos olhares e do ridículo da minha figura. Não terei de estar consigo, pelo menos nessas alturas. Tenho uma boa distração. Faz parte do meu carácter fraco e tendencialmente fútil, não é isso que pensa? (...) pois em tudo tenho, pelo menos, uma pequena certeza, uma pequena atitude. Encontrar um tempo meu (...)"


na nova cidade, sem querer, acabará por correr. E esperar, também, a mesma resposta que se apresenta sempre muda.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

evitar inadvertências

uma mulher sensível deixa de ver:

"(...) acontece, de repente, deixar de ver. tudo se torna então dolorosamente nítido. Todos os rostos se afastam de mim, vêm e vão, e eu escuto (...) O homem ao meu lado parece gentil, mas a gentileza agora dá-me vontade de rir como uma brilhante comédia cuidadosamente desenhada, onde as personagens se enforcam na teia do seu esforço vão e enganado. Tal como nesse delicioso género dramático, onde é natural a elevação do tom geral do discurso, também este homem, que observo agora com mais atenção, parece decidido a cativar a minha atenção, sacudindo-me com a sua voz. Descola-se dele sem saber, julgo eu. (...) Começo a sentir-me profundamente comovida com a vontade que tenho de o esmagar. Começo a sentir-me profundamente luminosa com toda a força que em mim vejo, de conseguir não regressar. Um homem sensível deve perceber estas bizarrias, ainda que nunca lhes responda(...)"


falta em cidade o que sobra em luzes. falta em afecto o que sobra em compaixão.
inadvertências.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

evitar respirar fundo


"(...) tentei, vezes sem conta, lavar-me de si. nua, tinha medo dos espelhos, mas tudo na minha roupa me lembrava o seu jeito de ma tirar. gesto do qual, mais tarde, se disse arrependido, ainda espero saber porquê. tudo na minha roupa e no meu corpo me lembrava a minha imagem odiada em si. insuportável. para uma mulher, é insuportável (...) tentei lavar-me de si, outra e outra vez, sem chegar nunca a querer lavar-me por inteiro com medo de matar o que restava desse toque doce, que resistia, da doçura do primeiro resgate (...)"



se ainda se lembra do cheiro.